Recanto do Chagoso
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Recordações de um Vira-latas Angorá
     Chovia muito naquela tarde de junho de 1977. Na frente do local onde eu trabalhava empilhavam-se alguns postes que a empresa de energia havia deixado já fazia algum tempo. Ao passar próximo desses postes vi um pequeno gatinho, que mais parecia um rato de tão debilitado que estava. Seus pelos pareciam colados à pele. Cruzamos nossos olhares e ele de cima dos postes esboçou um miado. Só esboçou, pois não emitiu som algum. Parecia que estava praticando ventriloquismo. Tive que fazer leitura labial pra perceber que ele estava miando. Ainda que silencioso, foi um miado tão sofrido que atingiu profundamente meus sentimentos. Percebi que se o deixasse ali, naquela chuva, seu destino não poderia deixar de ser outro senão a morte. Mesmo não tendo pra onde levar o meu novo "amigo", segui meu instinto e  apanhei-o. Suas energias estavam tão escassas que sequer reagiu, como é de costume aos felinos, num primeiro contato. Dei-lhe um bom banho e sequei-o com um pano que estava dando sopa por lá. Fiz um ninho de jornal na minha última gaveta  e ali deixei-o embrulhado por algum tempo. Na hora do lanche tentei dar leite pra ele mas não houve reação. Deixei-o dormir a tarde toda, já me preocupando com o destino que haveria de dar àquele pequenino animal.  Minha mulher já havia me adiantado anteriormente que se eu chegasse com um gato ou qualquer outro animal em casa ela expulsaria a todos inclusive a mim. O exagero no tom serviu como alerta da sua antipatia aos pets... Alem do que morávamos em um apartamento pequeno, desses de vila horizontal.
Isso pra não acrescentar que minha experiencia anterior com gatos me deixara profundas marcas de tristeza; fora muito decepcionante. O coitado morrera atropelado dois dias depois que eu havia mudado para uma rua mais movimentada. Entretanto a noite se aproximou e não houve outro jeito senão levar o bichinho comigo.
     Por sorte a patroa não estava em casa e pude fazer-lhe  uma limpeza completa.  Dei-lhe ainda algumas colheradas de leite e deixei-o continuar o descanso em um local confortável. Para sua sorte, quando  minha mulher chegou sensibilizou-se com a situação e até ajudou na sua convalescença. Esse relacionamento mais estreitado, em poucos dias, transformou um simples paciente no "xodó" da casa. Ganhou pires e mamadeira, colchão e tudo mais.  Três ou quatro meses depois  era um lindo gato que apesar de vira-latas tinha um focinho e cauda semelhante aos do "Angorá Turco".
     Logo que começou a crescer foi virando mascote da vila e então apesar de meu, por definição, era de todo mundo por afinidade. E, assim, levou um "vidão" por muito tempo e até parecia se aproveitar de tudo. Era muito cheio de gosto e tudo.
     Um certo dia me apareceu sem bigodes. Descobri que fora uma manicure boliviana, vizinha do lado que tinha feito a "limpeza" total... Até fui lá, reclamar,mas ela me garantiu que ele se sentia melhor assim e não teve jeito de convencê-la ao contrário. "Además, no es tuyo! pertenece a todos los que estamos aquí...", encerrou a discussão.
     Com o passar do tempo, como é comum nesses cortiços, os vizinhos foram mudando e uma nova sociedade foi surgindo. Essa nova sociedade não era muito apreciadora de animais. O bichano parecendo entender o novo cenário também começou a dar suas escapadas. Passava dois, três dias sem aparecer. Da população inicial apenas eu e a boliviana continuávamos na vila. E o gatinho cada vez mais ausente.
     Eis que chegou a minha vez de ir embora. No dia da mudança o gato não estava na vila. Ainda andei pelo quarteirão em sua busca mas nada vi. Voltei a vila várias vezes, mas ninguém sabia do seu paradeiro, nem a nossa amiga boliviana. Sumiu de vez.
     Dois ou três anos depois, passando próximo ao local do apartamento, vi de longe, na chuva, um gato muito parecido com o meu... Encarei-o e estremeci quando vi repetir-se a mesma cena de quando o encontrei, anos antes. Ele abriu a boca mas não conseguiu miar. Estava magro e até os poucos pelos colados à pele recompunham a imagem do dia em que nos defrontamos pela primeira vez. Ao tentar me aproximar do coitado, ele, fazendo cara de terror, fugiu. Um calafrio percorreu cada célula deste mortal ser, com tamanha intensidade que, já se aproximando de quatro décadas decorridas, ainda me abalo a tocar no assunto.
Chico Chagoso
Enviado por Chico Chagoso em 29/11/2012
Alterado em 17/09/2020
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