Miniconto
A família toda reunida na sala de audiência da vara de sucessões, aguardando a matriarca, dona Dorinha e, obviamente, o Juiz.
— Tenho certeza que ela nem se lembrou da audiência. Na verdade ela nem sabe mais discernir o que é isso - Comentou Paulinho, o filho mais novo.
Em seguida foi Riva que comentou. "Não sabe mesmo. Achei uma grande bobagem deixar ela com a herança do Maggio". Maggio, o filho mais velho de dona Dorinha, falecera precocemente de doença não muito bem explicada e como não tinha "um pinto pra dar água", todo o seu patrimônio, por direito, coube a sua mãe. Algo em torno de três milhões de reais.
Na sala estavam os três outros filhos de dona Dorinha e Manuela, sua neta, filho de outro filho também já falecido. Manuela e seus tios Paulino, Pedro e Riva estavam ali por um motivo comum: Interditar judicialmente dona Dorinha. De certa forma todos tinham um pouco de razão. A velha estava gagá e gastava muito dinheiro com coisas fúteis. Certa vez foi vista na praça da igreja distribuindo moedas de um real a todos os moleques da rua. Outra feita comprou uma moto alegando ser para Damião, o pai de Manuela, já falecido há mais de dez anos. Por outro lado todos eram gananciosos e queriam internar a pobre coitada num asilo. Era uma boa soma em jogo. Tirando os honorários ainda ia sobrar muito mais de meio milhão de reais pra cada um, importância que pra eles, era uma fortuna, pois a soma de todos seus patrimônios, juntos, não chegava à metade dessa quantia...
— Finalmente vou conhecer o Caribe - balbuciou Manuela.
— Eu também. - assentiu Pedro.
— Pois eu digo que finalmente vou ficar livre, pra viver. Vocês não sabem o que é ter que aturar a mamãe todos os dias comentou Riva — Ontem mesmo ela abriu o portão e deixou o Tufinho fugir e depois ainda veio brigar comigo dizendo que os cães tinham direito à liberdade. Imagina isso?
— É mas parece que ela não vem mesmo e aí só reforça a ideia da insanidade dela. Pelo menos eu espero assim. Já são sete e cinquenta e cinco... faltam cinco minutos... vamos torcer... - agora foi a vez de Pedro. Mal fechou a boca e eis que surge, radiante e risonha, dona Dorinha.
Cabelos presos e bem penteados um vestido muito sóbrio e bonito e sapatos de salto baixo, além de um conjunto de joias em perfeita harmonia; sem exageros ou ostentação. Não era dona Dorinha do dia-a-dia. Todo o seu jeito espalhafatoso de quem já não tem mais uma mente sadia que, naquele momento, era tanto esperado por todos, não entrou por aquela porta.
— Bom dia meus filhos amados. Esqueceram de mim, foi? Não sabiam que não eu não podia faltar à essa audiência? — Foi a saudação de Dona Dorinha, de maneira bem irônica.
Dois minutos depois, e antes que todos se recuperassem do constrangimento, entra o juiz e, após a apresentações e qualificações de praxe, iniciou a oitiva:
Juiz — Dona Dorinha a senhora poderia dizer seu nome completo e data de nascimento?
D.D. — Claro, meritíssimo! Meu nome é Maria Auxiliadora de Alencar e eu nasci no dia 27 de setembro de 1899, na cidade de Pedra Branca, estado do Ceará.
Juiz — Então seu apelido vem do seu nome? — Querendo saber mais sobre a sanidade da velha.
D.D. — Na verdade meu primeiro apelido era "Dora", de "Auxiliadora". Mas como na vizinhança tinha outra "Dora" mais velha e bem maior que eu, então passaram a me chamar de "Dorinha".
Juiz — Muito Bem! A senhora sabe porque está aqui?
D.D. — Desconfio, meritíssimo. Meu filho Maggio faleceu e deixou um patrimonio de mais de três milhões de reias. Minha neta Manuela e meus filhos querem botar as mãos nessa grana antes de eu morrer. Então eu acho que eles estão tentando convencer ao senhor que que eu não tenho mais faculdades suficientes para gerir esse patrimônio.
Juiz — Muito Bem! A senhora poderia dizer o que está fazendo com todo esse dinheiro e o que pretende fazer no futuro?
D.D. — No momento tem uma parte do dinheiro investida em ações da Petrobrás, do Banco do Brasil e da Vale do Rio Doce. Outra parte está investida em fundos mais agressivos, com maiores rendimentos mas com mais riscos de perdas. Agora a maior parte desse patrimônio está em pequenos imóveis residenciais e comerciais que além de se valorizarem, geram uma boa renda que revertem para o aumento do patrimônio. O que pretendo fazer é continuar com essa linha de raciocínio em relação aos investimentos, e quanto a renda dos alugueis quero montar um pequeno supermercado para testar a capacidade de administração de meus filhos... No resto eu quero viver bem e compensar os longos anos de sofrimento que vivi durante todo o meu passado. Viajar, comer bem...
Juiz — Dona Dorinha, eu já ouvi o bastante. Senhores, declaro que dona Dorinha é "capaz", possuidora de todas as faculdades e portando a legítima herdeira (como já o é) do patrimônio ora sob júdice.
Todos os demais passaram como num passe de mágica de boquiabertos (com cara de tacho e à interpretação do Juiz, abutres loucos para tomar os bens de Dona Dorinha) a tristes e decepcionados...
Nem bem o juiz levantou-se, dona Dorinha virou-se bruscamente para Riva e perguntou-lhe. "Riva minha netinha, cadê Damião? Porque não veio? E seu tio Maggio, também faltou?"
Ilustração:
Imagem gerado pelo Copilot Design do Bing sob o prompt: "Gere uma imagem bucólica onde uma idosa muito bem arrumada mas sem ostentação entra em um tribunal onde a cadeira do juiz está vazia, mas existem várias pessoas de idades e sexos diferentes na sala, próximas a mesa do juiz. Essas pessoas proximas a mesa do juiz devem expressar surpresa, olhando para a idosa".
Atualizações:
04/04/2024: Reformatação do texto e adoção de imagem ilustrativa.