Rota de Colisão
Quito, Irmão da Quéia era um amigão que eu tinha na pre-adolescência. Queia era uma garota que eu achava linda, mas nunca disse isso pra ela. Um pouco por timidez, mas principalmente, por orgulho infantil. E assim, nunca "rolou" nada entre a gente. Agora o Quito, ele tinha uma bicicleta. E foi nela que dei minhas primeira pedaladas. Ele era muito gente boa. Não só por ter deixado eu andar na bicicleta dele, mas principalmente por segurar a danada que mais parecia cavalo brabo, ou seja, por domar a bicha, até que eu finalmente conseguisse os primeiros "passos". Todos na casa dele gostavam de mim, muito mais que eu deles... dona Helena e seu Domingos (acho que era esse o nome do seu pai, já faz muito tempo...), conversavam comigo como se fosse da família. Davam conselhos, ensinavam algumas coisinhas. Mas o mais interessante naqueles dias era a bicicleta.
Fizemos então um acordo. Todos os dias eu tinha direito a uma volta de bicicleta. E só! Pode parecer pouco, mas isso foi fundamental para meu aprendizado. Tanto que com umas duas semanas eu já saía sem a ajuda do meu amigo. Mas só andava por locais desertos e espaçosos.
Um dia o pneu da bicicleta furou. Não tínhamos dinheiro para arrumar então o Quito pediu pra eu não falar pro pai dele, do contrário ele (o pai) nos proibiria de tirar a danada de dentro de casa. Asim fizemos. Como nós dois juntos pesávamos menos de 60 Kg, um pouquinho mais, talvez, mas não muito...! Pois bem, com esse peso nem havia tanta necessidade assim de câmara de ar cheia sob o pneu. Alguns meninos mais espevitados diziam que o meu peso nem achatava o pneu, mesmo vazio...
Num final-de-semana gordo a família saiu de casa e para meu desespero e sofrimento só voltou no sábado seguinte. Pior ainda foi no dia da chegada quando fui visitá-los. Quito só viria no dia seguinte, no domingo. Então tive que falar ao seu pai do bendito acordo. A princípio o velho não colocou objeção. Mas no momento que eu ia saindo todo faceiro, ele percebeu o pneu furado e recolheu a bicicleta... e assim passei mais uma semana juntando dinheiro para os reparos necessários. Uma fortuna mesmo dividida por nós dois.
No dia do conserto ficamos até tarde da noite nos reversando na coitada da "magrela". Foi nesse dia que aprendi a carregar um carona na garupa. E pra finalizar, resolvi me aventurar numa rua mais movimentada mas não muito longe. Estava tudo indo muito bem até que apareceu um velhinho a uns 100 metros de distância, caminhando em minha direção.
Aqueles cem metros foram angustiantes. Não para o senhorzinho, mas para mim. De início comecei a dizer pra mim mesmo e em voz alta: "Vai bater, vou bater, vai bater, vou bater...não vou conseguir desviar". E aquele cruel ancião não desviava sua rota; ameaçadoramente avançava firme e decidido a colidir comigo, aquele coitado infante ciclista. Eu, por meu lado, como se estivesse encantado pela bruxa má, continuava, também estaticamente firme na direção do velhinho, sem pedalar, sem olhar pro lados, sem respirar, sem pensar até que também emudeci... Havia um trilho invisível sob as rodas da bicicleta, tinha que haver, não tem outra explicação. Quando sai do transe estava no chão e o velhinho se limpando. Ainda ouvi do tolerante senhor suas palavras amigas. "...tenha mais cuidado e desvie dos obstáculos. Se eu fosse um carro você poderia se machucar...". Claro que naquele tempo nem havia tanto carro assim na minha rua, mas a mensagem era por demais pertinente.
Já se passou quase meio século e quase o mesmo tempo que não vejo qualquer pessoa daquela saudosa família. Recentemente, em um filme de ficção científica, vi alguém de uma suposta "NASA" afirmando que um asteroide gigante estava em rota de colisão com a Terra e que, neste caso, nada poderia ser feito, a não ser esperar. Não sei porque veio aquela cena patética do atropelamento do velhinho ocupar toda a parte boa da minha debilitada memória...
Chico Chagoso
Enviado por Chico Chagoso em 15/04/2014
Alterado em 08/11/2014