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Recanto do Chagoso
Prosa e Poesia
Textos
Raskólnikov - O castigo do Crime.
     No dia em que resolveu deixar de ser honesto por ter sido trapaceado duas vezes - uma no boteco e outra pelo taxista - quando chegou em casa Jorge se deparou com uma cena dantesca: A porta de seu apartamento estava arrombada. Os bandidos que fizeram isso, além de levarem tudo que tinha valor, quebraram, rasgaram e bagunçaram com os cacarecos restantes. Foi a conta pra consolidar a ideia do crime concebida no dia anterior quando fora numa joalheria escolher alianças para o noivado. A visão de uma fortuna em joias valiosas lhe ofuscara honestidade, já meio cambaleante.
     Ainda demorou uma semana pra receber o salário e ir buscar as jóias pretendidas. Foi o tempo que teve pra arrumar os pensamentos maléficos. Mas não arrumou.  Pois bem, enquanto o ourives ajustava a medida das alianças Jorge pediu pra ver os mostruários, no que foi prontamente atendido. Depois se deu por satisfeito e foi embora prometendo voltar outro dia para adquirir um presente para sua amada. O que ninguém percebeu é que nos óculos que ele usava havia uma micro-câmera. Assim, filmou e fotografou tudo que viu. À noite, enquanto noivava, seu pensamento não estava na noiva; estava naquelas benditas jóias.
     Um mês foi o tempo que Jorge precisou para mandar forjar varias imitações seguindo os vídeos e fotos produzidos. Foi ai que voltou a joalheria com a desculpa de cumprir a promessa de escolher a tal joia para a noiva. Pra sua sorte(?) quase nenhuma das joias que fotografara haviam sido vendidas. Então conseguiu substituir mas de vinte peças por aquelas que havia falsificado. E para não levantar suspeita comprou um par de brincos de valor mais em conta.
      A partir do momento que saiu da joalheria Jorge entrou numa crise paranóica profunda. A todo instante tinha a impressão de ter sido descoberto. Lia tudo que era jornal, ouvia todos os noticiários de todas as rádio e TVs, a acessava todos os blogs.  Foram dias de pavor! As palavras "joalheria", "jóias," "ladrão", "furto", "roubo", lhe causavam vertigens quando ouvidas. Quase desmaiou quando o jornal local da TV anunciou "Atenção não perca o próximo bloco! Uma coisa muito estranha está acontecendo na joalheria Joiosa ...". Um intervalo de dois eternos minutos pareceram dois séculos. Ficou tão angustiado que Dona Rafinha, sua mãe, percebendo sua aflição, lhe preparou água com açúcar. "Neste sábado desconto de até 30% nas jóias e semi-jóias", Fui a conclusão  do anunciado. Por alguns segundos a paz lhe adentrou o coração, mas logo voltou a estaca zero: "Pronto descobriram o tudo... dai o queima de preços pra recuperar o prejuízo... Estou ferrado. Logo chegarão a mim".
     Mas os dias foram se arrastando, mais de 15, e nenhuma notícia sobre o o fato, nem mesmo uma notinha, sequer... 20, 30, dois meses... E pra sequenciar a teoria da conspiração, assim do nada, sua noiva resolveu presentear-lhe com um exemplar de "Crime e Castigo". "Ela descobriu tudo e por isso que me castigar friamente com esse livro... Na primeira página, na dedicatória estaria a revelação de seu conhecimento..." Por medo e precaução foi direto pra contra-página da primeira folha olhar de soslaio as marcas da caneta tentando não decifrar o que a noiva dizia. Não avançou também nenhuma página. Conhecia superficialmente a obra russa. Seria a introdução um roubo ou furto a uma joalheria?. A curiosidade venceu o pânico e, na calmaria dos noticiários, resolveu ler o livro. Ai foi que sua vida virou o inferno de verdade. Ele era o próprio "Raskólnikov", protagonista do conto de Fiódor Dostoiévski, na angustiante  paranoia pós-crime. Se assustava até com o barulho da própria paginação do livro. Na rua, cada olhar que recebia para ele era o fim de tudo.  "Eles já sabem tudo! Descobriram. Quantos anos de cadeia vou ter que enfrentar". Sua noiva escolheu aquele livro de propósito para lhe castigar antes do castigo maior que receberia da sociedade. Quando ela lhe chamou para uma conversa "muito séria" quis abandonar tudo e fugir pra longe. Não deu tempo nem pensar direito pois quando ele menos esperava ela chegou na sua casa. "Você anda muito desligado das coisas do mundo. Que tá acontecendo? Não quer mais casar comigo?". Sorriu de alívio e ainda levou outra bronca por isso, mas sequer percebeu, tal era o estado êxtase.
     No auge de sua onírica perseguição, Jorge aviltou a possibilidade daquilo tudo ser apenas fruto da sua imaginação. Uma meta-linguagem da moralização ética. Se é que existe essa concepção no mundo real. No dele estava existindo. O roubo, talvez não tivesse passado de um sonho, ou pesadelo. Mas e as jóias? Lembrou da retrógrada aula de filosofia lá no primeiro ano da faculdade que abandonara em seguida. Parmênides? "O ser é!". E se não fosse?  Resolveu verificar. Inventou uma desculpa para ir no sítio do sogro, onde estava muito bem guardado o fruto do roubo. "Vou tomar um ar...Pescar... ". No oco de uma arvore velha já apodrecida ainda estava tudo lá. Tudo era verdade.  Parmênides.. "É e está aqui", gargalhou!
     Veio também o dilema entre a riqueza e o cárcere. Mas essa foi logo  embora, pois já não havia o que escolher. A situação agora era apenas de controle. E valeria a pena: Pelo preço que calculava valiam mais de um milhão de Reais. Até quinhentos mil aceitaria. Lembrou que o ourives que fez as imitações lhe garantiu que pagaria até 600 mil.  É claro! porque não tinha pensado antes. O joalheiro estava de olho nele. Aquele aceitaria qualquer merreca para denunciá-lo. Esse estaria fora de seus planos. Mas a situação não estava tão maniqueísta assim. Havia a hipótese de ir preso e continuar rico... O Purgatório de Dante.
     O mundo estava contra Jorge numa conspiração absoluta. O coitado não percebia que os olhares diferentes que recebia eram justamente por estar sempre assustado. No dia em que o padre pediu pra ficar mais um pouco depois da missa quase morreu de novo. "Pronto chegou aos ouvidos do vigário. Será que ele poder quebrar o segredo da confissão pra me prejudicar?" "Jorge!", invocou o padre. "Tenho um assunto sério pra tratar com você!" As pernas começaram a tremer. "Me fale a verdade!" Foi aí que cambaleou e teve que sentar para o padre não perceber a fraqueza que lhe abateu. "Você vai casar com rosinha mesmo ou está só enrolando a coitada!". Um jato de adrenalina lhe recobrou o bom senso. O torpe prazer momentâneo foi um ópio para sua alma. O que disse em seguida sequer se lembrou depois tamanha era a sua alegria.
     E assim se pasou quase um ano. Enquanto isso mudou as jóias de lugar três vezes. "Alguém me seguiu e viu onde guardei!" imaginou. Na última vez conseguiu outras embalagens idênticas àquelas das jóias e as encheu de anzóis, chumbada, em fim tralhas de pescaria. Colocou na velha árvore ocada. "Vai levar anzol!, não minhas jóias". Adiou o casamento, perdeu o emprego emagreceu e adoeceu durante esse período. Até mesmo quase terminou o noivado.
     Passou pela primeira vez na frente da joalheira, sem olhar para lá, quase 18 meses depois. Um dia esbarrou justamente com a atendente que lhe vendera o par de brincos. Tentou desviar o olhar mas a menina era astuta e logo foi dizendo "Seu Jorge! Como vai o senhor?" O chão abriu em seus pés. "Nuca mais nos visitou! Temos uma coisa para o senhor muito especial" e foi-se. "Será que vão fazer justiça com as próprias mãos?" E assim passou quase dois meses mais pra passar lá e encarar a realidade. Concluiu que nada sabiam senão já estaria preso. As joias falsas já teriam sido vendidas e ninguém havia percebido. Estava a um passo da liberdade absoluta. Mas precisava confirmar isso tudo. "Ora, um cabra macho que tem coragem de trocar um montão de jóias fica se borrando pra não voltar no local... Onde já se viu!" . Pediu pra ver as mesmas jóias que fotografou. Assim saberiam se já haviam sido vendidas ou não.
     Não podia ser verdade as tais jóias estavam lá tal qual ele trouxera do falsificador. Ninguém tinha descoberto... Resolveu ir mais além e arriscou perguntar se nenhuma tinha sido vendida. "Já vendemos sim, seu Jorge! Essas jóias são difíceis de sair mas volta e meia a gente vende uma". Foi a resposta. "É que estão todas aqui!..." "Não seu Jorge, deixa eu lhe explicar: é que essas aqui são apenas do mostruário. As verdadeiras estão no cofre". "Como assim? Essas jóias são falsas! E os brincos que você tirou do mostruário?". "Falsas não! São imitações para o cliente examinar com mais comodidade! Os brincos que o senhor levou apanhamos no cofre. Aí retiramos os do mostruário porque eram os últimos. O senhor entendeu?
     Seu jorge soltou um longo suspiro e depois de quase um minuto estático sussurrou: "Entendi!"
Chico Chagoso
Enviado por Chico Chagoso em 17/03/2015
Alterado em 30/03/2018
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