Bebida de Ántevspera
Glub-Ug era o nome do peru da dona Raquel. Ela dizia que era nome grego... e que significava "Ceia de Natal". Dizia e caia na gargalhada. Quando alguém "pegava corda" e perguntava se era verdade ela dava outra gargalhada e acrescentava... "Num sei falar nem brasileiro, quanto mais grego." Ela o tinha comprado de um "noiado", logo depois do carnaval. Não era roubado. Quer dizer, era da mãe dele, a qual tinha sido "convencida" a entregar-lhe o animal pra ele "fazer dinheiro pro remédios" (pura "noia"). E desde então dona Raquel cuidava do bicho com muito esmero.
Na casa de dona Raquel vivia também Maria, ex-mulher do ex-marido dela (de dona Raquel). O povo dizia que lá era a "Confraria das ex-do-Miguel" (esse o nome do "ex" delas). Maria era feia que fazia dó e já passava dos 40. Não namorava mais e nem saía de casa. Mas vez ou outra tomava umas "cervas" até ficar de pileque. Naquele final de ano tinha sido nomeada a curadora oficial do peru. Curadora nos amplos e ambíguos sentidos. Dona Raquel determinou: "Esse bicho, o glub-ug, tem que estar vivo e saudável no dia 23 de dezembro e na meia noite de 24 pra 25 ele tem que estar assado e delicioso"
Glub-Ug nem era tão grande, mas era o primeiro peru que dona Raquel iria matar, na verdade seria o primeiro peru inteiro que iria passar pela mesa dela. E ao que parece seria a primeira vez que verdadeiramente iria comer peru no Natal. Talvez fosse a primeira vez até mesmo da maioria de seus convidados. Não se falava em outra coisa nos cochichos das redondezas. "Cês viram como o "Glub-Ug" tá ficando bonito". "Será que dona Raquel vai matar ele mesmo, depois de tanto agrado pra ele?".
Novembro se acabando e isso parecia mexer com o psicológico do peru, pois ele andava muito irrequieto, parecia mais um pinto assustado. Além do mais, parecia saber falar "grego", quando alguém o chamava pelo nome, ele fugia assustado. Um dia passou quase duas horas debaixo da cama de Maria enquanto todo mundo o procurava por todos os cantos. O coitado tinha lá seu "n-ézimo"-sentido. Maria fazia de tudo para amenizar a situação. Até cantar, se é que se pode chamar aquilo de cantar, ela cantava. E fazia isso acariciando a cabeça dele. Uma espécie de cafuné.
Faltavam dez dias para o Natal quando o Glub-Ug sumiu. "Como assim? Sumiu nada! Foi dona Raquel que escondeu o bicho...". Foram dois dias de bafafá geral, até que "do nada" ele voltou. Estava abatido e triste. Parecia querer dizer "Já que em qualquer lugar vou pro cardápio mesmo, então é melhor ficar por aqui, onde terei tratamento vip enquanto o momento não chegar." As receitas de pratos baseados em peru chegavam de todos os lados. E a grande maioria delas é claro incluía a ingestão de cachaça na véspera para amaciar a carne. "Não pode ser cerveja? Eu divido a minha com ele." Quis saber Maria. Não podia! Cachaça e das boas! As visitas também aumentaram! Cada visitante fazia um comentário, um elogio, deixando o capcioso mas impotente peru nitidamente mais triste...
Enquanto todo mundo não comentava outra coisa, ninguém queria saber de participar de qualquer etapa do "massacre". Ninguém era tão "cruel" assim. Sobrou pra coitada da Maria... Ficou encarregada de tudo: ministrar a bebida, abater, preparar o prato (assado ao forno) e até servir a mesa. "Logo eu que cuidei dele esse tempo todo? Será que vou ter coragem?". "Se não tiver, toma uma dose da cachaça que ela vem..", sugeriu alguém! "Só se for pra eu ficar muito louca! Nunca bebi cachaça"
No dia 23, Pedro, um paraibano "cabra da peste" lá de São Bentinho, passou lá e se comprometeu trazer uma cachaça das melhores. E levou uma garrafa de Rainha, 54º, saborosa, forte, e cheirosa. "O peru vai ficar muito doido, nem vai sentir nada na hora do abate... e a carne vai ficar macia e deliciosa...", comentou. "Mas não pode ser na véspera, senão o bicho morre de coma alcoólico... Umas horinhas antes de abater"
Finalmente o dia 24. Como era praxe, todos foram pra igreja cedo da tarde pra voltarem meia-noite. Todos menos Maria que iria preparar o Peru... Missas, rezas, quermesse e sei lá o que mais! Foi uma tarde e noite de muita festa na igreja. Já se aproximando à meia-noite dona Raquel encabeçou o "cortejo" em direção à sua casa: Ceia em breve!
Encontraram as luzes apagadas, escuridão total na casa. Ligadas as lâmpadas da sala, lá estavam uma garrafa de "Rainha" totalmente vazia, a coitada da Maria totalmente bêbada, suja de vômitos e fortemente abraçada com o peru Glub-Ug, no mesmo estado dela.
Dizem as más línguas que Maria foi expulsa de casa depois do fatídico dia e acabou se casando com o tal Pedro. E que ambos são os maiores consumidores de "Rainha" da cidade. Dizem também que Glub-Ug fugiu de casa e virou mito. É patrimônio da cidade e tem trânsito livre em todos os locais, protegidos por lei municipal que também lhe concedeu um título de "Mascote Vivo de Coremas". Não achando amparo logístico para o nome "original", mudaram pra "Pavo", de "Meleagris gallopavo", que é o nome científico de um peru selvagem norte-americano. Por sua vez, Pavo, vive muito feliz e parece até que sabe do título e da lei que o protegem. Talvez nem tanto, mas dizem que onde tem um boteco ele sempre aparece para filar uma pinga... O último boato, pra terminar, é que dona Raquel acabou de comprar outro peru...
Baseado em um fato real contado por minha amiga Iva de Oliveira
Chico Chagoso
Enviado por Chico Chagoso em 08/04/2015
Alterado em 13/08/2023