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Recanto do Chagoso
Prosa e Poesia
Textos
O Saqueiro
     Naquele dia Jorginho acordou cedo. Muito cedo! Não era um dia comum. Seria o seu primeiro dia de trabalho de verdade.. Embora ainda não tivesse quinze anos de idade, “já tava passando da hora“, como dizia  seu pai, seu Manelinho. Este sim, suou muito vendendo legumes e verduras no mercado central de Porto Velho, pra sustentar a família.
        Naquele tempo a matéria plástica (como eram conhecidos os plásticos) ainda era rara no nosso dia-a-dia. Os sacos e sacolas de plástico, tão comuns hoje, praticamente inexistiam. No mercado, as compras eram entregues apenas enroladas em papel de embrulho.E ai residia um grande problema no transporte de carnes e peixes e assemelhados, pelos motivos óbvios. Mas como já deixou subentendido Carl Marx, o problema só vai aparecer quando todas as condições necessárias para sua solução estiverem presentes, havia sim, um paliativo. Havia ali uma legião de meninos que vendiam sacos de papel que eles próprios fabricavam. Era só alguém se aproximar do açougueiro ou do peixeiro que logo aparecia pelo menos uma meia duzia de “saqueiros”. Assim eram chamados. E aqui Jorginho volta a estória.
     Pois bem, no dia anterior, Jorginho seguiu os passos dos irmãos mais velhos: foi até o local onde se construía uma galeria enorme, no centro da cidade  Ali, comprou cerca de umas três dezenas de sacos de cimento vazios e passou a noite toda fabricando sacolas para vender no mercado, os tais sacos, como eram mais conhecidos. Essa era a matéria-prima: sacos de cimento e grude de goma (cola feita fécula de mandioca e água). Descartavam-se a primeira e a última camada (o saco tinha várias) e usavam-se as demais. O “acordou-se” usado lá no início é figurativo, pois ele apenas cochilou, tao empolgado que estava em seus afazeres. Bem cedo já estava  no mercado vendendo seus sacos...
           Seu Manelinho estava tranquilo. Deu todas as orientações para Jorginho se sair bem no seu primeiro empreendimento. “Seja respeitoso, atencioso, não tente passa ninguém pra trás e acima de tudo passe os trocos com muito rigor. Assim você mantem seus clientes.” Sua banca de verduras era bem posicionada de forma que acompanhava os passos do menino. “A noite conversamos, meu filho.” disse a Jorginho, logo que as vendas acabaram. O semblante era dos melhores. “Esse menino mantendo suas próprias despesas dá pra gente juntar um dinheirinho pra mandar botar luz lá em casa”, confabulou com dona Marina, sua esposa, que viera trazer a comida para os dois.
     Jorginho voltou pra casa com Dona Marina. Nesse dia nem brincou a tarde. Esperou o pai em casa. No inicio do ano seguinte passaria a estudar a noite e assim venderia sacos todos os dias, conjecturava  deitado na rede da varanda. O vento anunciando a chuva que não chegava era gostoso e aproveitou pra ler seus gibis do Pato Donald, Zé Carioca… Havia naquela brisa suave algo que o deixava realmente com uma aparência de vitorioso. Escureceu e nem percebeu, pois acabou por dormir um “cochilo comprido”, como dizia sua mãe.
     “Jantar!... todo mundo!”, Bradou Dona Marina. E parecia isso mesmo, “todo mundo”. Até os meninos da vinhança estavam presentes, o que aliás, não era novidade. Mas naquela noite tinha um motivo alem do delicioso cozidão de costela com legumes que era a especialidade da dona da casa: Todos queriam ver como tinha sido o dia de Jorginho como “saqueiro”. Antes de Dona Marina fechar a boca, quase todos já estavam à mesa, inclusive Jorginho. Os demais foram chegando e o jantar começou assim que seu Manelinho sinalizou. Uma panela enorme com o cozidão, outra menor com arroz, uma cuia de farinha de mandioca, alguns pratos de tamanhos e formatos bem variados e talheres, além de uma lata de goiabada cascão. La no canto um filtro de barro "suado" demonstrando o quanto estava fria a água para o final da refeição. Era o cenário.
      Mal seu Manelinho abriu a “oitiva” choveram de perguntas para as quais jorginho tinha respostas empolgantes e recheadas de heroísmo. Falava muito bem o moleque.  “Veio um homem com um cachorro que queria me morder… aí eu nem chequei perto dele…num sou nem doido!”, “Um homem com um carrinho parecido com carrinho de pipoca, não tem?! Pois ele comprou um montão de carne e peixe. Aí eu vendi cinco sacos pra ele.”, "Uma mulher bem velhinha disse que ia experimentar o meu saco, poque os outros descolavam antes dela chegar em casa.”    
     Já terminando o jantar, seu Manelinho fez a pergunta que todos os leitores devem estar se fazendo: “E o dinheiro das vendas, cadê? quanto você conseguiu apurar?:”. “Como assim, pai?”, quis saber Jorginho. “Ora, ‘Como assim’! ‘Como assim’, digo eu. Onde você meteu o dinheiro das vendas dos sacos?”,  Jorginho ficou meio atônito e estupefato, olhando para cima, como se no telhado estivesse tal dinheiro. Demorou tanto para responder que os outros meninos até começaram rir baixinho, entreolhando-se. Por fim respondeu:
     - Pai! O senhor não falou pra eu dar o troco com rigor? Então não sobrou nada, dei todo o dinheiro de troco…
Chico Chagoso
Enviado por Chico Chagoso em 04/10/2015
Alterado em 24/01/2021
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