Mapinguari Americano!
A noite era alta e a chuva intensa não dava visibilidade alguma aos três passageiros do pequeno barco que deslizava entre árvores inundadas ao longo do rio Jatuaraninha, a poucos quilômetros de Porto Velho. Mas isso não era, por si, um inconveniente para o regresso daquele grupo de veteranos pescadores amadores, já acostumados às torrenciais chuvas do inverno amazônico, sobremaneira naquele rio tão conhecido. E vejam que "conhecido", aqui, não é adequado para expressar o superlativo apropriado. Conheciam cada pedra, cada árvore, cada ribeirinho... Mesmo "Conhecer" ainda não emprestava o realce necessário. Na verdade tinham mesmo era muita intimidade com tudo e com todos dali, exceto com os peixes.
Acenderam o celebrim e logo perceberam que a bateria estava quase descarregada. "Deixa pra ligar no Madeira", sugeriu alguém... referindo-se ao rio Madeira. Estelinha, a unica mulher da equipe logo rebateu: "Aqui tem mais troncos e pedras que no Madeira". "É! Mas, se no Madeira estiver ventando tal como esta aqui, vai ter muito banzeiro¹".
Nem concluíram a discussão e foram surpreendidos por um forte barulho já muito conhecido deles. A hélice do motor atingiu algo. Pelo visto, estavam sem propulsão motora. Descer na correnteza iria demorar muito, pois com o Madeira cheio, seus pequenos afluentes também transbordam e ficam muito lentos. Continuar na base do remo estava fora de cogitação, pois, como é de praxe, só havia um no barco. Havia sim uma hélice reserva, mas a noite e a chuva inviabilizava qualquer tentativa de troca.
Resolveram, então, dormir na casa do seu Zé Cará, logo a frente. Uma palafita típica da região, erigida em paxiúba² e sem a parede da fachada, ou seja, a "sala" só tinha três paredes, o que deixava as noites quentes, muito mais amenas. Não havia ninguém na casa. Como o leitor pode ter deduzido, não havendo parede frontal, também não havia porta ou mesmo um portal de entrada. Assim se instalaram... sem permissão e sem cerimônia. Claro que ninguém dormiu pois continuaram a bebedeira tradicional, até para enfrentar o fio da madrugada. "Aqui pode faltar remo... faltar hélice... peixe... mas cerveja, duvido!", alguém gracejou.
Lá pela madrugada, mas já com o clarão do amanhecer repararam o barco e retomaram a viagem de volta, rumo ao Madeira. A uns 500 metros da desembocadura, ouviram um barulho muito esquisito na margem e em seguida avistaram vultos como se fossem um grupo de mais de seis crianças. Mas havia um comportamento muito agressivo nesse grupo. Talvez não fossem crianças, então. Mas o que seria, então? Quebravam galhos, chutavam coisas e não estavam caminhando exatamente pela trilha que ali havia. Parecia que abriam sua própria. A rala vegetação ribeirinha naquela área permitia isso; a mesma que deixava mais visível o comboio, vez ou outra.
Algum tempo depois, perceberam que não eram mais que seis "pessoas" como supuseram anteriormente. Eram quatro. Muito pequenas, mas não eram crianças. Um homem alto e forte os seguia. Mais adiante o primeiro dos quatro tropeçou e, ao que parece, caiu num buraco, ou depressão, e imediatamente foi seguido pelos outros três na queda, num efeito dominó. Pareciam estar acorrentados entre si, pela distância muito pequena entre eles. Seriam prisioneiros?
Numa pequena praia, mais adiante ainda, foram avistados novamente, agora bebendo água diretamente no rio, como selvagens. Ai o mistério se intensificou... Não pareciam humanos em nada. Pareciam mais macacos, tanto pela postura quanto pelos movimentos e trejeitos.
Quando o barco foi avistados por eles ouviu-se um grito, como uma ordem, que parecia ter sido dada pelo homem forte. Ouviu-se também um estalido de um chicote. Os gestos rudes do homem forte compunham uma silhueta de alguém chicoteando no ar... Tensão redobrada no barco. Ninguém se atrevia sequer respirar. E se antes preocupava-lhes a lentidão do rio, agora parecia-lhes providencial. Até mesmo desejavam que o barco descesse mais lentamente ainda, tão embevecidos que estavam pelo encanto do momento. Além do chicote identificaram na outra mão do "carrasco" algo que mais parecida uma lança, ou uma vara retilínea. Momentos depois veio um segundo grito. Se o primeiro parecia ser um alerta, este era amedrontador. E o efeito não foi apenas sobre os "macacos" em terra. Todos no barco além de mudos como já estavam, pararam de respirar. Anos depois, Estelinha confessaria que o seu próprio coração fez uma pausa naquele momento. Os "pigmeus" se alvoroçaram e sob um terceiro grito, embrenharam-se mata a dentro. Foi necessário uma branquinha³ afoita pular por sobre o barco para que se restabelecesse a ordem, não antes dos gritos de pavor dos tripulantes, como se o pequeno peixe fosse um tubarão. A exceção era Estelinha que apenas estava muito mais branca do que amarela, como era. Isso talvez fosse a comprovação de sua declaração futura sobre o estado de seu coração.
Esse causo me chegou desse tamanho. Não tivesse sido contado por todos que naquele barco estavam, eu não teria feito este registro. Os próprios integrantes daquela pescaria tentavam comparar as toscas fisionomias que viram com alguns seres da realidade ou da mitologia. Todos contaram a mesma versão que divergia apenas em pequemos detalhes. O triste deste fato era que nada de concreto o exato eles comprovaram alem das silhuetas fantasmagóricas.
Por muito tempo tais protagonistas (ainda que passivamente) como que combinados puseram uma pedra sobre o fato. Só retomaram ao assunto quando ouviram um boato de outro causo semelhante. Mas ainda assim deixaram no campo das lorotas, sem se preocupar muito em comprovar, dar testemunho ou precisar nada.
Algum tempo depois contei essa versão para um amigo, doutor em Ecologia, cuja tese teria sido sobre um rio "virgem" na região. Sobre a tal "virgindade" não me convenceu muito, não, mas as confidências sobre sua desconfiança acerca de experiências genéticas com "macacos" na região, me soaram mais entendíveis. Que os responsáveis viviam na colônia americana que existe na proximidades da cidade, à margem do Madeirão e, que "coincidentemente", fica bem próximo do local da "aparição", isso também deixei no limbo. Cético e gozador que sou, então brinquei com ele. "Eram mapinguaris. 'Mapinguaris americanos'"
(¹) Banzeiro, marolas, pequenas ondas.
(²) Tábuas semi-cilíndricas obtidas do caule de algumas palheiras sobretudo do açaizeiro.
(³) Peixe muito comum na região.
Chico Chagoso
Enviado por Chico Chagoso em 16/02/2016
Alterado em 28/09/2020