Recanto do Chagoso
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O mochileiro
Certa ocasião, durante o atraso de um voo entre Manaus e Porto Velho, conheci um rapaz que voltava de um passeio que fazia pelo extremo norte do país. Era professor de inglês em duas escolas e fazia Letras na Federal. Durante o período em que estivemos juntos ele me falou muito de sua vida. Era solteiro e tinha a vida que muitos pediram a Deus. Dizia que a vida era tranquila e esperava curtir muito mais ainda no futuro.

O que mais me chamou a atenção foi o fato de que ele não tinha qualquer ambição, a não ser a de continuar sendo um "bon vivant", o quanto pudesse e até se aposentar. "Depois de aposentado vou poder ser um " 'full' 'bon vivant' ", confessou em gargalhadas. Na vida atual, passava o ano da maneira mais simples possível para poupar recursos  e assim, poder esbanjar nas férias. Mas isso não o impedia de aproveitar o melhor da vida, mesmo nos "difíceis meses de trabalho". Não tinha carro, por isso, ou para isso, morava a menos de 50 metros de uma parada de ônibus por onde passavam aqueles com destino ao seu trabalho, à estação rodoviária, ao aeroporto e ao centro comercial da cidade. Num raio de um quilômetro da casa dele havia hospital, posto de saúde, correios, lotérica, supermercado, farmácia, padaria, pista de caminhada, banca de revista e até várias igrejas de religiões distintas. Tudo isso não fora por acaso. "Pesquisei tudo isso antes mesmo de conhecer Porto Velho". E enquanto eu esboçava um gesto de interagir ele continuou: " E tem mais, não foi a única cidade que 'estudei' não, viu?". O primeiro projeto visava o Nordeste. Mas não conseguiu um bom emprego e lá não se controlaria no que diz respeito às despesas. Porto Velho fora a melhor projeção para um cenário de 20 anos…

O rapaz era mesmo um sábio aproveitador das situações. Aceitava tudo que lhe fosse oferecido. Até mesmo aquilo que, à primeira vista, lhe parecesse ruim ou desnecessário. Acharia um meio de reverter a situação, posteriormente. Todos os prêmios atrelados a produtos que usava eram alvos de suas investidas. Tampa de refrigerante, embalagens de detergente... Tudo que suscitasse um prêmio, por mais remota que fosse sua chance, ele investia. Uma bicicleta no mercadinho da esquina, um livro de receitas, uma bandeira do Brasil, uma entrada para uma peça de teatro eram apenas alguns itens do rol de prêmios já recebidos. Mas  não fazia disso uma sangria desatada. Apenas estava atento a tudo. Pacotes de turismo promocionais, se realmente mais em conta, eram considerados e muitas vezes comprados. Contou-me que certa vez, deixou de ir a um resort porque a "grana tava curta". Aí ele ficou o ano todo ligando para o 0800 ("claro! Né?”) até que viu uma promoção na baixíssima temporada  cobrando um quarto do valor... Não perdeu!

Ser professor de inglês era, na verdade, seu segundo hobby. Enquanto não estava "turistando", gerúndio que ele inventou, estava se divertindo "in door". Vendia folgas, substituía colegas, dava aulas particulares, ajudava montar TCC's, projetos científicos. Assessorava mestrandos e doutorandos no que tange ao idioma inglês. Não raro traduzia pequenos textos e manuais. Era pedagogo e o curso de Letras quase concluso era pra dar mais “gás” na sua carreira. Filho de gente humilde construiu sua própria carreira a muito custo. Mas já na faculdade conseguiu sua independência. "Independência de pobre é barata", troçava.

O “mochileiro” tinha mais outro hobby: colecionava chaveiros, broches, e outros objetos pequenos… Não era um colecionador comum. Para cada objeto elaborava uma verdadeira ficha catalográfica onde constava tudo o que soubesse a respeito, inclusive a forma e data de aquisição.  Na ocasião me presenteou com uma tampa de garrafa de uma cachaça paraibana que já não era fabricada há mais de vinte anos.

Confesso que quando nos apresentamos no momento em que buscávamos informações sobre nosso voo, no aeroporto, minha expectativa era apenas descobrir algo mais sobre mochileiros. Era isso que ele parecia em todos os aspectos. Mas a conversa fluiu para algo muito mais interessante. Aprendi muita coisa em poucas horas.

Retomada a viagem, procurei sentar na mesma fila que o rapaz, para continuar nossa salutar conversa. Falou-me ainda de mil outras coisas, até das situações de risco pelas quais passava… “A vida que  levo é boa mas tem um certo perigo… tudo que é aventureiro pode oferecer perigo… Hoje estou aqui… amanhã…”, confessou ele ao falar das suas aventuras pelos países vizinhos. Já tinha passado fome, sido confundido com bandido, fugido da polícia, surrado por uma gangue e outras coisinhas mais, que fez questão de dizer que nem podia contar.

Na chegada a Porto Velho ainda aceitou carona minha: levei-o até uma loja no centro da cidade, onde faria umas compras. Depois desse dia vi-o apenas uma vez subindo em um ônibus numa parada da Av. Sete de Setembro, em meados dos anos noventa. Ainda toquei a buzina do carro mas ele sequer ouviu. Ainda segui o ônibus por algumas quadras mas depois desisti.

Muitos anos depois, quando fazia um curso de Administração na UNIR, procurei me informar do tal rapaz, ninguém sabia dele. Professores, funcionários, terceirizados… ninguém. Sem o nome, que eu havia esquecido, ficava mais difícil ainda. Já no final do curso, numa conversa com um funcionário antigo, da DIRCA, veio a triste notícia: tinha morrido em um acidente de carro na Argentina…

Sobre a tampa de garrafa que ganhei… não faço a menor ideia de onde ela foi parar. Provavelmente, algum desavisado tenha lhe dado um destino não tão digno: o lixo.
Chico Chagoso
Enviado por Chico Chagoso em 27/09/2017
Alterado em 08/01/2021
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