ASSOMBRAÇÃO DE OSSOS
Conto Surreal por Samuel Castiel
A mente humana é a única criadora de seus próprios fantasmas¹
Ele estava no interior a serviço, num vilarejo que ficava à margem de um rio caudaloso e muito largo. Com poucos habitantes, o silêncio era sepulcral durante todo o dia, quebrado apenas pelo chamado triste e distante da inambu. Não havia mais que dois ou três carros em toda a cidade, que trafegavam esporadicamente por aquelas paragens à beira do rio. A quietude era total a qualquer hora do dia e, à noite, ficava ainda maior! Desde que chegara aquele vilarejo para realizar serviços de topografia onde seria construído um cemitério municipal, sua única distração e lazer resumia-se em pescar nas horas de folga, postado sobre um píer que entrava rio adentro. Naquele dia estava ali desde as 17:00 horas e já se aproximava das 18:00 horas quando avistou ao longe uma canoa com um remador apenas, e que descia rio abaixo, vindo em sua direção. Ficou esperando o viajante solitário, mas a canoa virou e encostou na margem do rio bem antes de passar por ele e seu único ocupante desceu. Como já estava escurecendo, no lusco-fusco, não dava pra distinguir quase nada, apenas que era um homem grande, só de calção. A linha da pescaria continuava bamba, nenhum peixe mordia! Foi então que ouviu um barulho muito alto, como se fosse um farfalhar de folhas, vindo em direção ao píer. Amarrou sua linha de pesca na madeira do píer e foi até a rua para ver que barulho era esse! Viu então uma figura monstruosa, da altura de um dinossauro rex, o qual, quando o viu, transformou-se em uma montanha de ossos que começaram a cair em cascata, ao mesmo tempo que avançavam na rua em sua direção. Espavorido, juntou as poucas forças que ainda lhe restavam e saiu em desabalada carreira, rumo aquela pousada onde se hospedara. Ao chegar, já com o coração a sair-lhe pela boca, a dona da pousada ao vê-lo tão assustado, suando, pálido e com os cabelos em pé, perguntou-lhe:
— O que houve com você? Parece que viu a alma de outro mundo? Tome um bom banho e depois de se refrescar tem uma sopa quentinha pra você em cima do fogão.
Ele seguiu o conselho daquela senhora. Tomou um banho e se refrescou! Achou que estava trabalhando muito ultimamente e começando a ver coisas estranhas...Foi então que se lembrou da linha de pesca, amarrada lá no píer. Correu para lá e, com uma lanterna, viu que sua linha estava tensa. Provavelmente um peixe mordeu a isca! Mas ao pegar na linha achou estranho, pois ela não puxava nem balançava como se prendesse um peixe. Poderia estar apenas presa em algum galho submerso! Mas logo descartou essa possibilidade pois, ao puxar a linha, apesar de estar pesada, não oferecia resistência!...Puxou, puxou até que apareceu preso ao anzol um fêmur! O susto foi tamanho que quase o derrubou no rio! Largou para trás a linha, o anzol e o fêmur e saiu em desabalada carreira voltando para a pousada. Dessa vez, porém, antes de chegar teve o cuidado de se recompor e respirar melhor para, de novo, não chamar atenção da curiosa dona da pousada. Já estava deitado quando se lembrou da sopa quentinha que o esperava em cima do fogão! Vestiu um roupão de banho surrado que encontrou pendurado atrás da porta do banheiro, e que mal chegava até seus joelhos, e foi para a cozinha. Aquela Senhora realmente não estava blefando: lá estava a panela de sopa quentinha, cheirando e ainda fumegante sobre o fogão. Pegou um prato fundo e a concha ao lado e levantou a tampa da panela. A fumaça teve que se dissipar um pouco para que ele pudesse ver apenas os ossos, muitos ossos que foram se multiplicando, estalando e caindo pra fora da panela, em sua direção.
Quando ele deu conta de si, estava na rodoviária tentando se justificar com o motorista do ônibus porque tinha que embarcar e viajar vestido naquele ridículo roupão de banho!...
Publicado originalmente no Site da ACLER, em 2015, sob o mesmo título - ASSOMBRAÇÃO DE OSSOS
¹) Samuel Castiel
Ilustração:
Imagem criada pelo ChatGPT, sob o prompt: "A surreal scene set in a quiet, isolated village by a wide, flowing river at twilight. A lone man stands on a pier that juts into the river, holding a fishing line. The surrounding landscape is dim, with shadows from distant trees and the fading light casting an eerie mood. In the background, a canoe with a single rower has just vanished, while a monstrous figure, as tall as a T-Rex, is emerging in the distance, transforming into a cascading mountain of bones. The man, startled, looks in the direction of the sound. The sky is a blend of dusky purples and blues, with hints of orange on the horizon, and the water reflects the fading light. A mist is rising from the river, adding to the otherworldly atmosphere. To one side, a narrow dirt road leads back to a small inn where dim lights flicker inside."