Crônica por Sandra Castiel
Quisera eu ser psicanalista… Poder desvendar os complexos meandros da mente, até onde a capacidade humana alcança.
Saber que há um acervo de sentimentos, pensamentos e memórias inacessíveis à consciência; por algum motivo, nós os reprimimos no que Freud chamou de Inconsciente.
Penso que essas memórias normalmente vêm à tona (ou não) através da psicanálise, ou por outras causas, como o sujeito viver algo semelhante ao que o traumatizou no passado, por exemplo.
Fico curiosa com o HD de memórias que são inacessíveis à minha consciência. Sei que guardo em mim lembranças das várias fases de minha existência: a menininha que anda com sua boneca, a pré-adolescente, a adolescente problemática, a jovem adulta, a mulher de meia – idade, a mulher mais velha, enfim, um conglomerado de “personagens”, de tudo o que fui até chegar ao que me tornei hoje.
E aí vem o mais surpreendente: de vez em quando, reproduzimos pensamentos, memórias, atitudes de qualquer fase de nossas vidas, situações que viviam “recalcadas” nas profundezas do inconsciente (isto se aplica a todos os seres humanos).
Às vezes penso que se o tempo não houvesse distanciado de mim essas personagens, eu poderia interagir com qualquer uma delas, isto seria muito bom. Já pensou ver a si mesma, criança, plena de inocência, como eram as crianças da época?
Se eu pudesse ver a criança que eu fui, diante de mim, caminhando na calçada da casa onde nasci e cresci, iniciaria uma conversinha:
— Oi garotinha, pra onde vai com essa boneca tão bonita?
— Ele não é uma boneca, ele é um menino, não vê que ele não tem cabelo?
Bem que pensei em explicar à menina que alguns bebês nascem sem cabelo e são meninas, depois o cabelo cresce. Mas, como a garotinha parecia emburrada, achei melhor mudar de assunto.
— Você gosta de passear? — Perguntei à criança. Esta então respondeu, os olhinhos brilhando:—Gosto, sim, gosto de passear de carro. — É mesmo? — Mas só tem dois carros na cidade! – Falei. Como você passeia?
— Sabe aquela rural azul e branca? — é do amigo do papai, ele leva a gente pro sítio dele; o que mais gosto de ver lá no sítio são os patinhos no lago, a gente joga farelo de pão pra eles.
E continuou a criança: —Quando eu crescer, vou ter um lago bem grande, cheio de patinhos! Eles são tão bonitinhos... A mãe vai na frente, e os patinhos seguem ela.
Àquela hora resolvi encerrar a conversa; acabei de descobrir de onde vem minha grandiosa afeição por patos e lagos, ou lagos e patos, coisas assim.
Depois de um salto quântico no tempo, tento lembrar-me da adolescente que fora um dia; as lembranças parecem vagas: a mais forte é aos quinze anos de idade, a terrível timidez que me torturava.
Adentro no mais profundo de minha mente e sinto o quão aquele estado de espírito me incomodava. Ficara curiosa com relação à minha persona adolescente. Até que a vejo. Está bem à minha frente.
Reconheço-a pelo vestido (de sair) amarelo, pelas sandálias de saltinho que amava e pelo meio-sorriso de Monalisa.
— Oi, há quanto tempo não a vejo…— falo, tentando iniciar uma conversa com a mocinha que me olha com curiosidade.
— A senhora me conhece? — pergunta a adolescente, mascando seu chiclete de bola. —Sim, desde que nasceu; sou amiga de sua mãe—prossigo. São sete irmãs, não é?
A jovem responde com um sinal afirmativo.
Olhando-a melhor, percebo um ar de tristeza em seu olhar. Então, pergunto: — Você tem namorado?
A jovem demora a responder; quando o faz, sua voz está fraca:
— Não, nunca tive; minhas irmãs dizem que não tenho namorado porque sou muito magra, no Colégio também falam isso.
Familiarizada com o impacto da lembrança cruel, olhei-a de cima abaixo: o que vi foi seu rosto harmonioso, seu sorriso bonito, seus cabelos escuros, à altura dos ombros; reparei, sobretudo, em seus grandes olhos cor de mel. Sua figura longilínea, alta e magra, encantaria as pessoas de hoje; porém, o padrão de beleza da época era muito diferente: as mulheres consideradas belas em geral eram “cheinhas”.
A conversa se estendeu um pouco mais: a mocinha falou de seu amor pelos livros e de como sua mãe parecia feliz com esta preferência. Já lera Dom Quixote, Dom Casmurro, Vidas Secas, O Pequeno Príncipe, Senhora, Vinte Mil Léguas Submarinas, Odisseia e Ilīada, e estava finalizando Os Lusíadas. Contou
que, quando era menor, conseguiu decorar quase todos os poemas de Olavo Bilac.
Fiquei emocionada e gratificada em saber que aquela adolescente cheia de complexos já encontrara sentido para sua vida, um sentido que permanecerá até o fim de sua existência.
Nos dias subsequentes, as noites foram longas e insones; no fundo sabia por que. Era importante, àquela altura, pelo menos mais um encontro comigo mesma: o que a mulher jovem-adulta que fora em passado remoto teria a me dizer?
Penso nela e lembro-me vagamente que, naquela fase de minha vida, eu já “vencera” alguns complexos.
Ao entrar em meu quarto para tentar dormir, o susto fora inevitável. Ela estava ali, sentada na poltrona em frente à cama:
— Boa Noite, — diz a jovem adulta, cumprimentando-me, antes de levar o cigarro à boca. — Você fuma? — pergunto-lhe em tom de reprovação.
— Claro que fumo, por quê?
— Os médicos alertam sobre os danos que o cigarro causa à saúde. — Falo à moça, preocupada.
Ato contínuo, ela apaga o cigarro, no meu belo pires de porcelana inglesa, usando-o como cinzeiro; reparei a mancha de batom na pontinha do cigarro; na hora, lembrei-me de Agatha Cristie.
Olhei-a com curiosidade e achei que se tornara uma bela mulher; cabelos muito longos e brilhantes, cílios enormes nos olhos delineados à la “gatinho” e um batom suave, cuja marca deixara na ponta do cigarro. Sua voz firme e agradável refletia sua personalidade forte. Lembrou-me minha mãe. Senti-me gratificada.
Diante daquela jovem adulta, tão segura de si, restou-me achar que era bem mais confiante do que sou, hoje, nesta fase de minha vida.
Já em minha cama, sorrio para ela meu melhor sorriso, mando-lhe um beijo, viro-me para o lado e procuro dormir. Estou exausta. Sinto que não preciso ouvir mais nada naquele momento; ela aprendeu a se defender e a perseguir seus objetivos. Contudo, creio que poderia ter interagido mais com “elas”.
Faltaram tantas! Uma pena. Enfim, vencida pelo cansaço e pelo sono, penso que carrego nas sombras do inconsciente todas as mulheres do mundo.
Sandra Castiel:
professora, escritora, membro efetivo da Academia de Letras de Rondônia.