Recanto do Chagoso
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Frohe Weihnachten - Joyeux noël

 

**Natal de 1943:**

 

     O inverno da Pomerânia* apesar de cruel, não era mais frio que o coração do soldado Klaus. Uma guerra desumana abatia a Europa, assustava o mundo e recrudescia aquele alemão de pouca idade. Sua rotina era, por si, outra prisão, a sua, onde a caveira entrecortada por dois ossos** no distintivo da boina era o próprio cadeado. Naquela noite de Natal, no entorno de Stalag***, os fantasmas da guerra dançavam sob a neve cadente que reluzia os  pálidos raios da lua.

      Foi neste sombrio cenário que Klaus avistou uma figura encurvada, encostada a um tronco de árvore: um prisioneiro francês, um espectro de pele e ossos, alheio a tudo.

     — Afaste-se! — ecoou a voz autoritária.

     Apesar do tom ameaçador, o francês, absorto, não se moveu. Seus olhos, fixos em um pequeno retângulo de papel e a lágrima que traçando um rio sobre a sujeira do rosto pálido, transpareciam a amargura do lago em que naufragava. Por sua vez, o alemão, paradoxalmente, percebeu o nível da abstração, que não era da guerra que se tratava. Assim como num transe se aproximou do "inimigo", quando, em um ato quase impensável, o francês exibiu o papel: uma fotografia desbotada de uma linda jovem com duas crianças. Era um vislumbre de um mundo que parecia ter deixado de existir. Uma dor surda apertou o peito de Klaus com tamanha força que o libertou da caveira do chapéu. Sem dizer uma palavra, ele estendeu a mão aberta em sinal de "espere",  enquanto baixava o fuzil e lentamente vasculhava o próprio bolso. Klaus retirou de seu casaco uma foto quase idêntica a do francês: uma jovem, duas crianças. Outra lágrima desceu no rosto de Jean, o francês, mas desta vez, também no rosto de Klaus. Dois rios de dor e saudade se encontraram formando um maior, da esperança de paz, revelando uma humanidade pouco conhecida, mas comum por trás de uniformes inimigos.

 

     Guardaram as fotografias, cada um seguiu seu caminho. Mas agora, o destino traçava novos rumos à quela guerra sangrenta, pelo menos aos dois soldados "inimigos". A partir daquele dia, seus encontros se tornaram um segredo compartilhado. Fumavam cigarros alemães. Seus nomes — Klaus e Jean — eram as únicas palavras que trocavam. A conversa não fluía, mas seus olhares falavam tudo. Certa vez, quando Jean disse um "Auf Wiedersehen" de despedida, Klaus respondeu com um "Au revoir", perfeitamente pronunciado.  A guerra, no entanto, permanecia  sombria e avassaladora.

 

   **Fevereiro de 1944:**

     O inverno continuava e não era a única coisa fria. A esperança de Jean definhava a cada dia. Apesar de sua "guerra" particular, compartilhada, a outra ainda era cruel e recrudescente. A notícia de uma tentativa de fuga ecoou pelo campo. Era um ato de desespero, uma aposta final contra a morte. Jean se juntou a ela. Correu, o coração batendo como um tambor de guerra em seu peito, o ar gélido queimando seus pulmões. A liberdade parecia um sonho ao alcance da mão, até que viu a arma de Klaus, apontada para seu peito. Os gritos e estampidos ouvidos no campo não fizeram Jean parar. Desviou da mira, e continuou. Correu ainda mais rápido. Klaus o seguiu com a mira, apontando para sua cabeça. Por um instante eterno, o mundo parou. Jean fechou os olhos, esperando o estampido final e até conjecturou "melhor por ele que por outro 'SS' ou por em Stalag"***. Klaus hesitou. Seu dedo tocou o gatilho, mas seu coração ergueu a arma. Ele não atirou para matar, mas para enganar seus superiores. O tiro errou o alvo mas acertou permanentemente o coração de sua própria consciência, melhor dizendo, de ambos. Jean fugiu, carregando não apenas seu corpo, mas a dívida eterna de uma vida salva. Klaus ficou para trás, num mister de traidor da pátria e herói da humanidade. E a guerra ainda avassaladora.

 

   **Natal de 1953:**

     Não havia mais guerra. O mundo respirava paz. Dez anos depois, o cheiro de pinheiro e de biscoitos de gengibre perfumava a pequena vila de Lindau, na Baviera alemã. Klaus, agora um homem de paz, terminava de decorar sua árvore de Natal. A guerra era uma lembrança distante, mas furtivamente, as imagens dos olhos de Jean ainda o visitavam em noites silenciosas. Um chamado à porta o tirou de seus pensamentos: uma família inteira de estranhos com rostos cansados esperavam em sua porta.

 

     O homem à frente, com voz tremida e um alemão perfeito, disse:

—"Guten Abend, Herr Schoen… Herr Klaus Schoen. Frohe Weihnachten." Eu sou Jean Claude. O prisioneiro que você deixou escapar. Estudei alemão por quatro anos, descobri seu nome e endereço, e vim até aqui para agradecer — Concluiu em um alemão com sotaque, mas irrepreensível.

     Klaus parecia perplexo. Seu pensamento voltou para as fotografias do primeiro contato. 

Parecendo ler seus pensamentos Jean estendeu a ele um pequeno quadro, uma reprodução da dita foto que um dia o unira dois inimigos. Era uma relíquia de dor e de milagre. Uma lágrima escorreu no rosto de Klaus, mas desta vez, era de uma gratidão profunda e avassaladora.

 

     — "Joyeux Noël, mon ami". Eu também estudei francês. Aqueles momentos nunca saíram da minha cabeça. Eu esperava um dia rever você. Que bom que você veio à minha casa. — foi a resposta carregada de emoção.

 

 


*      Pomerânia

Província da Prússia divida entre a Alemanha e a Polônia, após a 2ª Guerra Mundial.

 

**   caveira entrecortada por dois ossos

Figura principal da insígnia da Polícia Nazista Schutzstaffel, mais conhecida como SS

 

***  Stalag (Stalag II-D)

Foi um campo de prisioneiros de guerra do Exército Alemão durante a Segunda Guerra Mundial , localizado perto de Stargard , na Pomerânia .

 

**** SS 

O autor Usa a metonímia para se referir a um soldado paramilitar da Schutzstaffel, esta sim, SS

 

Glossário (Google Tradutor)
Do alemão:

  • Auf Wiedersehen: Adeus
  • Guten Abend, Herr Schoen… Herr Klaus Schoen. Frohe Weihnachten: Boa noite, Sr. Schoen… Sr. Klaus Schoen. Feliz Natal.
  • Schutzstaffel: Equipe de proteção

Do Francês:

  • Au revoir: Adeus
  • Joyeux Noël, mon ami: Feliz Natal, meu amigo

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Enviado por Chico Chagoso em 24/08/2025
Alterado em 24/08/2025
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